"Então em que acredita, uma vez que ignora o sobrenatural??? -- Creio na humanidade, creio no ser humano, creio em você; respondeu ele (O Abade Faria), Eis todo meu credo."

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domingo, 23 de agosto de 2009

Uma página perdida dos Evangelhos: as tres palavras divinas > Leon Tolstoi II





Capitulo VII


Simão, dirigiu-se a Miguel:

- Aceitamos esta encomenda; espero que ela não nos cause aborrecimento. O couro é caro e o senhor violento. A não ser que nos enganemos! Tu tens olhos melhores, mão mais firme. Toma as medidas e corta o couro para mim. Eu farei as costuras.

Miguel obedeceu. Pegou o couro, desenrolando-o sobre a mesa e dobrando-o em dois tomou seu cortador e pôs-se a trabalhar.

Matriona aproximou-se, viu o trabalho de Miguel e ficou espantada com o que ele estava fazendo. Habituada ao ofício, percebe que Miguel não está cortando botas, e sim sandálias. Quis falar, mas pensou: "Com certeza não entendi que espécie de calçado é preciso para aquele senhor. Miguel sabe melhor do que eu o que está fazendo. Não me vou intrometer."

Uma vez talhado o calçado, Miguel toma os pedaços e começa a cosê-los, não dos dois lados, mas de um só, como para sandálias. Matriona de novo se espanta, mas não quer intrometer-se e Miguel continua a costura. Chega a hora da refeição. Simão deixa seu trabalho e percebe que Miguel fez do couro sandálias em lugar de botas.

"Como?! Miguel, que durante um ano inteiro jamais se enganou!... Que desgraça acaba de fazer! A mercadoria está perdida; que direi ao senhor? Onde encontrar outro couro igual?"

E diz a Miguel:

- Que fizeste, amigo? Tu me perdeste. O senhor encomendou botas, e tu, que fizeste?

Nesse mesmo instante, alguém bate, com força. Espia-se pela janela e vê-se alguém amarrar o cavalo na aldrava da porta. Abre-se; entra o criado do senhor.

- Boa tarde, mestre.

- Boa tarde. Que quereis de nós?

- A senhora me mandou por causa das botas.

- As botas? O quê?

- Sim, o senhor não precisa mais de botas. Ele morreu.

- Como?!

- Nem chegou à sua casa vivo; morreu no carro. Quando chegamos, abri a portinhola e o vi caído no assento, já duro. Só com muito trabalho conseguimos tirá-lo de lá. A senhora mandou-me aqui, dizendo: "Vá dizer ao sapateiro que faça sandálias para um defunto em lugar de botas que teu senhor encomendou. Pede-lhe que se apresse; espera que estejam prontas e traz-mas. Eis por que estou aqui."

Miguel tomou as sandálias e as sobras do couro e enrolando tudo cuidadosamente, entregou o pacote ao empregado, que esperava.

- Boa tarde para todos. Que passem muito bem!




Capitulo VIII


Um ano, dois anos se passam e agora, já faz seis anos que Miguel mora com Simão. E sempre a mesma coisa; nunca sai, raramente fala. Durante todo esse tempo, somente sorriu duas vezes; a primeira, quando Matriona lhe deu de comer, e a segunda, durante a visita do senhor.

Simão vive sempre encantado com o seu aprendiz, não lhe pergunta mais donde veio e só teme que ele se vá embora.

Um dia, todos estavam reunidos em casa. Matriona punha a panela no fogo, as crianças trepadas no banco olhavam pela janela. Perto de uma janela, Simão trabalhava com a sovela; perto da outra, Miguel concluía um salto.

Uma das crianças veio apoiar-se no seu ombro e, espiando pela janela, disse:

- Veja, tio Miguel, uma senhora com duas meninas. Parece que vêm para este lado. Uma das meninas é manca.

A essas palavras, Miguel abandona o trabalho, vira-se e olha para fora. Simão se admira. Miguel jamais olhou para fora, e ei-lo agora, colado à vidraça, examinando alguma coisa. Simão, por sua vez, também espia. Vê, realmente, uma mulher bem trajada, conduzindo duas meninas vestidas de peliça e chapeuzinhos de lã, que se dirigem para sua casa. As crianças são tão parecidas, que seria impossível distingui-las. Uma delas, porém, claudicava da perna esquerda.

A senhora pára na porta, levanta o trinco e entra na "izba", levando, à sua frente, as duas meninas.

- Bom dia para todos.

- Sede bem-vinda! Que desejais?

A mulher senta-se perto da mesa ~e as meninas se achegam timidamente a ela; manifestam receio dos homens.

- Preciso de sapatos para as pequenas, para a primavera.

- Ah! É fácil. Nunca fizemos sapatinhos tão pequenos, mas tentaremos. A senhora os quer debruados ou reforçados com pano? Miguel, meu aprendiz, é muito hábil.

Simão vira-se e percebe que Miguel fixa os olhos atônitos nas crianças. Simão surpreende-se. Evidentemente as meninas são bonitas, com os seus olhos negros e as suas faces rechonchudas. As peliças e os chapéus que trazem são graciosos. Mas não pode compreender por que Miguel as examina com tanto interesse, como se já as conhecesse. Simão, cada vez mais surpreso, fala com a senhora, faz o preço e toma as medidas.

A senhora põe a aleijadinha no colo e diz:

- Tome duas medidas para esta; farás um sapato para o pé doente e três para o outro. Os pés de ambas são iguais: elas são gêmeas.

Terminadas as medidas, Simão pergunta, apontando para a aleijadinha:

- Por que ficou ela assim? Uma menina tão linda! Nasceu desse jeito?!...

- Foi sua mãe, que a aleijou.

Matriona entra na conversa e, curiosa de saber quem é aquela senhora e aquelas crianças, diz:

- Então, não és a mãe delas?

Nem mãe, nem mesmo parente, minha boa mulher. Elas são minhas filhas adotivas.

- Não são do teu sangue e tu as mimas assim?!

- Como não as mimar? Amamentei a ambas. Tive um filho, que Deus me tirou. Não o acariciava tanto quanto a elas.

- De quem são elas?



Capitulo IX




A senhora, tornando-se loquaz, começou a contar:

Há seis anos que são órfãs. O pai morreu numa quarta-feira e a mãe numa sexta. Órfãs de pai antes de nascerem, a mãe não sobreviveu ao seu nascimento. Neste tempo eu morava na vila, com meu marido. Éramos vizinhos, parede-e-meia. Num dia em que trabalhava sozinho no bosque, o pai foi esmagado por uma árvore. Ficou tão mal, que, chegando em casa, faleceu. Três dias depois sua mulher deu à luz estas duas meninas. Pobre e sozinha ninguém a assistiu, nem parteira, nem mesmo uma simples empregada. Deu à luz sozinha e sozinha morreu.

Pela manhã fui vê-la; entro e a encontro - a desgraçada - já fria. No momento da morte, caíra sobre a filhinha e a aleijara. Reuniram-se os conhecidos; levaram a morta, amortalharam-na, puseram-na num caixão e a enterraram. Todos os vizinhos eram boas pessoas. As menininhas ficaram sós. Que fazer delas? Nessa época eu era a única mulher na vila que estava amamentando. Aleitava o meu primogênito há oito semanas. Enquanto se esperava uma decisão, levei-as comigo.

Os camponeses reuniram-se, discutiram o que fariam delas e depois me disseram:

- Maria, cuida das crianças e alimenta-as, enquanto nós decidimos o assunto.

Já havia dado o seio a uma, mas ainda não o dera à outra, à aleijada. Não pensava que ela pudesse viver.

Depois me arrependi; ela choramingava de fazer pena. Por que deve sofrer este anjinho? Fi-la mamar e aleitei as três crianças; o meu e as duas orfãzinhas. Era jovem, forte, alimentava-me bem e tive muito leite. Deus me ajudava. Enquanto as duas crianças mamavam, a terceira esperava. Quando uma das duas estava satisfeita, pegava na terceira. Deus me deu a graça de criá-las. O meu morreu dois anos depois e Deus não me concedeu mais filhos. Com o tempo melhoramos de vida e agora vivemos no moinho, em casa de um negociante. Temos bons ordenados, a vida é fácil, mas não tenho filhos. Que faria eu, sozinha, se não tivesse estas meninas? Como não amá-las, não mimá-las? Elas são a alegria da minha vida.

A senhora apertou as crianças contra o peito, beijou a aleijadinha, enxugando os olhos cheios de lágrimas. Matriona suspirou e disse:

- Vive-se sem pai e sem mãe. Só não se vive sem Deus.

Conversava-se assim, quando a "izba", de repente. se iluminou, como por um relâmpago, que tivesse vindo do lugar onde Miguel estava sentado. Todos viraram para esse lado e viram Miguel, sentado, com as mãos cruzadas sobre os joelhos, olhando para o alto: ele sorria.



Capítulo X




A senhora partiu com as crianças, Miguel levantou-se do banco, deixando o trabalho sobre a mesa, o avental e, saudando os patrões, disse-lhes:

- Perdoai-me, patrões: Deus me perdoou; perdoai-me também.

Os patrões vêem que uma luz se dimana de Miguel. Simão levanta-se e, saudando-o, diz:

- Vejo, Miguel, que não és um homem como os outros, por isso não posso pedir para ficares, nem interrogar-te. Diz-me somente, por que estavas tão sombrio e temeroso quando te encontrei e trouxe para minha casa? Por que te tranqüilizaste quando minha mulher te deu de comer? Sorriste e ficaste mais confiante. Depois, quando veio aquele senhor encomendar as botas, sorriste de novo e ficaste mais sereno; e hoje, quando esta moça trouxe as meninas, sorriste uma terceira vez e cintilaste de luz. Diz-me, Miguel, por que esta luz se irradia de ti e por que sorriste três vezes?

Miguel respondeu:

- Deus me punira por uma desobediência. Eu era um anjo, no céu, e desobedeci. Era um anjo do céu e o Senhor me mandou à terra para procurar uma alma, a alma de uma mulher. Desci à terra e vi uma mulher deitada, doente, que acabara de dar à luz duas meninas. As crianças choramingavam perto da mãe, fraca demais para amamentá-las. Quando ela me viu, compreendeu que Deus chamava a sua alma. Chorou e suplicou:

"Anjo de Deus, meu marido foi morto há três dias pela queda de uma árvore; não tenho irmã, tia, nem mãe. Minhas orfãzinhas têm somente a mim! Não leves a minha pobre alma! Deixe-me cuidar de meus filhos até que possam andar; as crianças não podem viver sem pai nem mãe. "

Ouvi a mulher, pus uma criança no seu seio e a outra nos seus braços. Subi ao céu, fui à presença de Deus e lhe disse:

"Não pude trazer a alma da parturiente. O pai foi morto por uma árvore; ela teve duas gêmeas e me suplicou que não lhe levasse a alma, que a deixasse."

O Senhor me respondeu:

- "Volta e traze-me a alma dessa mãe. Um dia conhecerás três palavras divinas e aprenderás o que há nos homens, o que não é dado aos homens e o que faz viver os homens. Quando tiveres aprendido isto, voltarás ao céu ".

Voltei à terra e levei a alma da pobre mãe. As crianças deixaram o seio materno, e o cadáver caiu, esmagando o pé de uma das meninas.

Enquanto me elevava no céu da vila, para levar a alma a Deus, um turbilhão me arrastou, minhas asas tornaram-se pesadas e caíram; a alma subiu sozinha para o Senhor, e eu fiquei caído na terra, à beira da estrada.




Capitulo XI



Simão e Matriona compreenderam então a quem tinham eles vestido e alimentado; quem vivera sob o seu teto. Choraram de temor e alegria. O anjo ainda lhes disse:

- Estava só no caminho; só e nu. Até então não conhecera ainda as misérias humanas; nem o frio nem a fome. Tornei-me um homem. Senti frio e tive fome e não soube o que fazer. Vi uma capela consagrada ao Senhor; quis refugiar-me nela, mas a porta estava fechada a cadeado e não se podia entrar. Sentei-me então na soleira da porta, para me abrigar do vento. Chegou a noite; sentia fome e frio; sofria. Subitamente ouvi passos na estrada. Aproximava-se um homem, trazendo umas botas e falando sozinho. Pela primeira vez, vi a face mortal de um homem, depois de ter eu mesmo me transformado em homem. Tive medo dessa face e me virei. Ouvi o homem perguntar a si mesmo:

"Como alimentar minha mulher e meus filhos? Como me proteger contra o frio no inverno?"

Eu pensei:

- "Morro de fome e frio e eis que passa um homem pensando somente em vestir a si e aos seus com peliças e em providenciar pelo pão. Ele não me saberia, portanto, alimentar."

O homem me viu, fechou o sobrecenho, ficou ainda mais terrível e passou... Estava desesperado. De súbito, eu o vi voltar. Olhei-o e não o reconheci; a morte que estava estampada na sua face desaparecera. Ele se tornara vivo e vi a imagem de Deus no sou rosto. Aproximou-se de mim, vestiu-me, tomou-me pela mão e levou-me para sua casa. Chegados à sua morada, uma mulher veio ao nosso encontro, e falou. Ela era ainda mais terrível do que o homem e o hálito da morte saía de sua boca; o sopro mortal de suas palavras cortou-me a respiração. Senti-me desfalecer. Ela queria mandar-me embora, no frio, e eu sabia que ela mesma morreria, se me escorraçasse.

Mas o seu marido lhe falou de Deus. Logo ela se transformou. Enquanto nos servia a comida e me olhava, eu também a fixava: a morta se tornara viva e reconheci a Deus no seu rosto. Lembrei-me então, da primeira palavra de Deus: Tu conhecerás o que há nos homens. Assim aprendi o que há nos homens: amor . Na minha alegria de ter a revelação de uma das palavras divinas, sorri pela primeira vez. Tudo, porém, não me foi revelado a um tempo; ainda não sabia o que não é dado ao homem, e o que faz viver os homens.

Vivi um ano convosco. Veio o homem encomendar as botas, botas que deviam durar um ano, sem se deformar nem rasgar. Olhei-o e vi perto dele um dos meus companheiros - o anjo da morte. Ninguém o viu além de mim. Conhecia-o e sabia que antes do pôr do sol a alma do ricaço seria levada. Então pensei: o homem prevê com antecipação por um ano e não sabe que deve morrer antes desta noite. Lembrei-me da segunda palavra de Deus: Conhecerás o que não é dado aos homens. Já sabia o que há nos homens, e acabara de aprender o que não é dado aos homens. Não é dado aos homens conhecer as necessidades do seu corpo. Pela segunda vez sorri. Sentia-me feliz por ter visto o anjo, meu companheiro, e por Deus ter-me revelado a segunda palavra. Ignorava, contudo, o que faz viver os homens. Assim vivi esperando a revelação da última palavra divina. No sexto ano, a moça trouxe as gêmeas; reconheci-as e, compreendendo tudo, pensei:

"A mãe implorava pelos filhos; imaginei então que, sem pai nem mãe, as crianças perecessem e eis que uma mulher estranha as recolheu e as alimentou!"

Quando vi a moça chorar de emoção ao falar dessas pequenas estranhas de quem ela se compadecia, vi nela a imagem de Deus e compreendi o que faz viver os homens. Percebi que Deus me revelara a terceira palavra e me perdoara e, pela terceira vez sorri.




Capitulo XII



A roupa desapareceu do corpo do anjo e ele se iluminou duma luz tão resplandecente, que os olhos humanos não a poderiam suportar. Sua voz, que parecia vir, não dele, mas do céu, elevou-se e disse:

- E compreendi que o homem não vive de suas necessidades, mas pelo amor. Não foi permitido à mãe saber o que faria viver a seus filhos; não foi permitido ao ricaço saber o que lhe era preciso; não é dado a homem algum saber se à tarde lhe serão necessárias botas de vivos ou sandálias de mortos. Transformado em homem, vivi, não porque soubesse satisfazer minhas necessidades humanas, mas porque houve um caminhante e sua mulher, cheios de amor, que tiveram pena de mim e me amaram. As órfãs viveram, não porque se preocupassem com elas, mas porque uma mulher estranha tinha amor no seu coração, se compadeceu de sua sorte e as amou. Todos os que vivem, não vivem por bastarem a si próprios, mas pelo amor que há no homem. Sabia, outrora, que Deus dera vida aos homens e quis que eles vivessem. Agora compreendo outra coisa. Compreendo que Deus não quer que os homens vivam isoladamente. Por isso não revela a ninguém o que lhe é necessário. Quer que cada um viva para os outros. Por esta razão revela a cada um o que é útil não somente a ele, mas também aos outros. Vejo agora que os homens que pensam viver unicamente das suas próprias inquietações, vivem, em verdade, somente do amor. O que vive do amor, vive em Deus, e Deus vive nele, porque Deus é o amor.

O anjo cantou louvores ao Senhor.

Sua voz fez tremer a "izba"; o teto se abriu. Uma coluna de fogo subiu da terra para o céu. Simão, a mulher e os filhos se prosternaram no chão. O anjo abriu suas grandes asas e subiu aos céus.

Quando Simão voltou a si, a "izba" já havia retomado o seu aspecto habitual e ele estava sozinho com os seus.

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